Como o segundo país mais populoso do mundo tem cerca de mil mortes por COVID-19

Até a terça-feira, dia 28 de abril, a Índia havia relatado 31.360 casos de coronavírus e 1.008 mortes

Há menos de um mês, o futuro da Índia parecia terrível. Especialistas previam que o país teria milhões de casos de COVID-19. Os médicos alertaram que a indianos precisavam se preparar para um subida violenta de casos que poderia prejudicar o já mal equipado sistema de saúde do país. Temia-se que o vírus pudesse se espalhar como fogo pelas favelas e cortiços, onde os moradores vivem em bairros apertados, e o saneamento básico geralmente não está disponível.

No entanto, até agora, o segundo país mais populoso do mundo parece ter evitado o pior. Até a terça-feira, dia 28 de abril, a Índia havia relatado 31.360 casos de coronavírus e 1.008 mortes, ou cerca de 0,76 mortes por milhão. Basta comparar isso com os Estados Unidos, onde o número de mortes por milhão é superior a 175.

Alguns especialistas dizem que os números relativamente positivos da Índia sugerem que o bloqueio nacional do país para interromper a disseminação do coronavírus poderia estar funcionando. Por enquanto.

Coronavírus, Índia
Idoso assiste o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, em um discurso para o país durante o bloqueio nacional imposto pelo governo. Índia, 14 de abril de 2020.
Foto: Manjunath Kiran/AFP/Getty Images

“A Índia não esperou o problema aumentar”, disse o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, em 14 de abril, ao anunciar o prolongamento do bloqueio nacional de 21 dias do país até 3 de maio. “Em vez disso, assim que o problema apareceu, tentamos impedi-lo, tomando decisões rápidas. Não consigo imaginar como seria a situação se decisões tão rápidas não tivessem sido tomadas”.

Mesmo assim, a realidade por trás dos números da Índia é mais complicada, e especialistas alertam que é muito cedo para a Índia ganhar os parabéns pelas suas ações.

“Parece que o vírus não foi capaz de causar tantos danos quanto se temia, pelo menos nesta etapa”, afirmou Srinath Reddy, presidente da Public Health Foundation of India, uma organização sem fins lucrativos que trabalha em treinamento, pesquisa e desenvolvimento de políticas de saúde. “Acho que não podemos dizer que encerramos esse capítulo”.

As decisões de Modi foram mesmo rápidas?

Em 24 de março, Modi anunciou que o país entraria em um bloqueio de três semanas.

A escala de decisão era inédita. A Índia tem uma população de 1,3 bilhão de pessoas. O único país com uma população maior (China) impôs bloqueios em cidades específicas, mas nunca em todo o país.

Foi uma decisão de alto risco. Fechar o país significava que milhões de trabalhadores que recebem por dia de trabalho seriam privados de uma renda. Mas não impor o bloqueio arriscaria esmagar o sistema de saúde da Índia. Um estudo estimou que, sem medidas de distanciamento social, cerca de 150 milhões de pessoas na Índia seriam infectadas até junho. Na sexta-feira, 24 de abril, a principal autoridade da pandemia da Índia disse que o país já teria mais de 100 mil casos se não fosse o bloqueio.

A Índia entrou em confinamento com relativa rapidez: a medida foi anunciada quando o país havia notificado 519 casos positivos de coronavírus. Em comparação, a Itália esperou até ter mais de 9.200 casos antes de entrar em um bloqueio nacional, enquanto o Reino Unido registrava cerca de 6.700.

Ramanan Laxminarayan, diretor do Center for Disease Dynamics, Economics & Policy (CDDEP), uma organização sem fins lucrativos com escritórios em Washington e Nova Délhi, disse que a decisão de impor um bloqueio imediato, mesmo quando o número de casos era baixo, provavelmente reduziu muito as taxas de contágio.

Após o bloqueio, milhares de trabalhadores migrantes tentaram deixar as principais cidades da Índia, pois as restrições tiraram seus empregos. Isso provocou temores de que os migrantes pudessem espalhar o vírus. No estado de Uttbar Pradesh, autoridades passaram a pulverizar com desinfetantes trabalhadores que retornavam ao local, uma abordagem ineficaz para controlar o coronavírus.

Cerca de uma semana após o início do bloqueio, duas pessoas morreram de coronavírus nas favelas densamente lotadas de Mumbai. Após a segunda morte, vários membros da família do falecido foram testados e colocados em quarentena, e o quarteirão de 300 casas e 90 lojas que foram o bairro foi fechado.

Coronavírus, Índia
 

Quando o bloqueio foi imposto, a Índia já havia tomado outras medidas.

Em 11 de março, o governo suspendeu todos os vistos de turista e anunciou que todos os viajantes que estiveram nas áreas mais afetadas do mundo nas últimas semanas ficariam em quarentena por pelo menos 14 dias. A partir de 22 de março, todos os voos comerciais internacionais foram proibidos de desembarcar na Índia e os serviços de trem de passageiros foram suspensos.

Os Estados Unidos, em comparação, restringiram estrangeiros que vinham da China, Irã e alguns países europeus, mas não há proibição geral de entrada de estrangeiros no país.

E se os números não estiverem corretos?

Como acontece com todos os países, nossa compreensão do surto é tão boa quanto os números que temos à disposição. E isso depende de testes.

Segundo o Ministério da Saúde da Índia, o país realizou mais de 625 mil testes até domingo – mais do que a Coreia do Sul, que foi elogiada por sua abordagem aos testes.

Quando especialistas em saúde pública avaliam o grau de testes de um país, não olham apenas para o número total – no lugar disso, geralmente avaliam a taxa de resultados positivos. Se uma grande parte dos testes voltar positiva, isso sugere que apenas os casos mais graves (como os que estão no hospital) estão sendo testados.

Segundo Mike Ryan, diretor executivo dos Programas de Emergências em Saúde da OMS, uma boa referência é ter pelo menos dez casos negativos para cada positivo.

Cerca de 4% dos testes da Índia são positivos, de acordo com dados do Ministério da Saúde da Índia – ou seja, bem abaixo desse valor de referência. Também é uma taxa significativamente menor do que a dos EUA, que é de cerca de 17%, de acordo com dados da Universidade Johns Hopkins (JHU). Menor também que a do Reino Unido, de cerca de 21%, com base em dados do governo.

Outra medida útil é a proporção de casos fatais. Na Índia, cerca de 3% dos casos resultaram em óbito, em comparação com mais de 13% na Itália, Reino Unido e França, de acordo com a JHU. Isso sugere que a Índia está testando pessoas além daquelas com os sintomas mais graves.

Mas a taxa de testes da Índia é extremamente baixa per capita. Apenas cerca de 48 em cada 100 mil pessoas foram testadas, em comparação com cerca de 1.175 na Coreia do Sul e 1.740 nos EUA.

Coronavírus, Índia
Tubo de amostra em uma unidade de teste de coronavírus em favela de Dharavi durante um bloqueio nacional imposto pelo governo em Mumbai, em 16 de abril de 2020.
Foto: Indranil Mukherjee/AFP/Getty Images

Samir Saran, presidente da Observer Research Foundation, diz que a Índia aumentou drasticamente suas capacidades de teste, mas ele ainda não está satisfeito com os números. Enquanto outros especialistas dizem que testes comunitários amplos seriam impraticáveis e um desperdício de recursos, Saran diz que isso é algo que a Índia precisa considerar, uma vez que possui grandes áreas da população que viajam entre regiões para trabalhar.

De acordo com Reddy, embora a Índia possa não estar testando o suficiente, os médicos provavelmente estão capturando a maioria dos casos moderados e graves. Se houvesse um grande aumento nos casos da COVID-19 que não fosse detectado por testes, os hospitais ficariam repletos de casos e haveria um aumento nos sintomas de gripe na comunidade, disse ele.

Por enquanto, não há indicação de nenhum dos dois. Mesmo assim, há um crescente conjunto de evidências de que os sintomas da infecção por coronavírus vão muito além daqueles do parecidos com a influenza.

Poderia haver mais pessoas morrendo do que sabemos?

Mesmo quando a Índia não está enfrentando uma pandemia, apenas cerca de 22% de todas as mortes registradas são atestadas por médicos. Isso significa que, na maioria das mortes, a causa oficial não foi avaliada.

E já há evidências de que algumas mortes podem estar escapando do radar. Um médico residente em um dos principais hospitais do governo em Mumbai disse na semana passada que, quando os cadáveres eram trazidos para o hospital, eles não os testavam para detectar coronavírus, mesmo que suspeitassem da causa da morte pelo vírus.

“Se a história pessoal mostra que a pessoa entrou em contato com alguém que deu positivo para o vírus, nós descartamos o corpo da mesma maneira que fazemos com pacientes com teste positivo para coronavírus”, contou o médico, que pediu para não ser identificado, pois não estava autorizado a falar com a mídia.

Mas, dizem os especialistas, nesta fase, não parece que haja uma enorme inundação de mortes por coronavírus.

“Mesmo se não estivermos testando e descobrindo o suficiente, não há corpos suficientes sendo empilhados em hospitais, UTIs ou necrotérios para sugerir que estamos no meio de algo realmente dramático nesta fase”, afirmou Saran.

Já Laxminarayan, do CDDEP, diz que a verdadeira contagem de mortes pela COVID-19 só ocorrerá muito mais tarde, quando pudermos comparar as estatísticas deste ano com os anos anteriores.

Quando o coronavírus entrou no país?

As rápidas medidas políticas da Índia contam apenas parte da história. Mesmo antes do bloqueio, o coronavírus estava presente no país, que já havia relatados alguns casos.

Em 30 de janeiro, a Índia registrou seu primeiro caso – um estudante da Universidade Wuhan, na China.

Foi na mesma época que o Reino Unido, a França e a Itália também relataram seus primeiros casos, embora seus surtos de coronavírus seguissem trajetórias dramaticamente diferentes. Todos os três países têm agora mais de 100 mil casos de coronavírus.

Coronavírus, Índia
Trabalhador arruma camas em centro de quarentena em Guwahati, em 29 de março de 2020.
Foto: Biju Boro/AFP/Getty Images

Os especialistas ainda não sabem ao certo por que o vírus teria mostrado um padrão diferente de disseminação na Índia.

Uma razão possível, disse Reddy, é que o coronavírus pode prosperar em condições mais frias, o que significa que pode não se espalhar com tanta eficiência na Índia, onde as temperaturas costumam ser superiores a 30º C.

Mas a ciência vem contradizendo essa ideia. A Organização Mundial da Saúde diz que as evidências até agora mostram que o vírus pode ser transmitido em todas as áreas, incluindo aquelas com clima quente e úmido. O comitê da National Academy of Sciences dos EUA disse que os dados são mistos sobre se o coronavírus se espalha tão facilmente no clima quente quanto no frio.

Para Reddy, outra possibilidade é que a população da Índia possa ser menos suscetível devido à política de vacinação universal do bacilo Calmette–Guérin (BCG) no país. Desenvolvido para combater a tuberculose, o BCG está sendo estudado em ensaios clínicos em todo o mundo como uma maneira possível de combater o novo coronavírus.

coronavírus, Índia
Policiais da cavalaria usam capacetes com tema de coronavírus em campanha de conscientização em Secunderabad, em 2 de abril de 2020.
Foto: Noah Seelam/AFP/Getty Images

No entanto, a OMS observa que não há evidências que a vacina BCG proteja as pessoas contra a infecção por coronavírus, e a OMS não recomenda a vacina como prevenção contra a COVID-19.

Por enquanto, mais evidências são necessárias. “Não sabemos qual é o fator que nos ajudou”, disse Reddy.

Um bloqueio de 40 dias será suficiente?

Mesmo que o surto da Índia seja comparativamente pequeno, ainda não é hora de comemorar.

Há uma enorme diversidade de opiniões sobre o que acontecerá quando a Índia suspender seu bloqueio em 3 de maio – se os casos dispararão ou se o bloqueio terá conseguido restringir os números.

“Uma onda vai acontecer assim que voltarmos do bloqueio nacional. Esse é o meu palpite “, disse Oommen Kurian, membro sênior da Observer Research Foundation. “A Índia apertou com sucesso um botão de pausa. Mas o problema agora é que não podemos ficar em pausa para sempre.”

Coronavírus, Índia
Drone usado pela polícia para monitorar as atividades de pessoas e divulgar anúncios de conscientização em Chennai, 4 de abril de 2020.
Foto: Arun Sankar/AFP/Getty Images

O fator determinante provavelmente será quais restrições ainda existirão quando o bloqueio for suspenso. Como Reddy colocou: “Não é assim que funciona, como se amanhã declarássemos vitória e depois voltássemos ao normal”.

Especialistas dizem que o distanciamento social precisará ser mantido, embora alguns estados com menos casos possam facilitar as restrições. Uttar Pradesh (o estado mais populoso da Índia, com 200 milhões de habitantes) estendeu a proibição de reuniões públicas até o final de junho.

Laxminarayan alertou que, se as medidas de distanciamento social e de higiene “não forem levadas a sério, teremos um problema sério que o sistema de saúde não está equipado para lidar”.

Uma coisa que não funciona na Índia é um bloqueio específico por idade, no qual os idosos ficam dentro de casa e os jovens podem voltar ao trabalho. Em todo o mundo, os idosos correm um risco maior de morrer de coronavírus (nos EUA, 80% das mortes são aquelas com 65 anos ou mais).

coronavírus, Índia
Cachorro de rua na frente de um portão histórico vazio da Índia em 30 de março de 2020 em Nova Deli, Índia.
Foto: Yawar Nazir/Getty Images

A Índia tem uma população relativamente jovem – 44% da população tem 24 anos ou menos, em comparação com 23% na Itália e 29% na China, de acordo com dados do CIA World Factbook.

Mas muitos indianos vivem em uma família de três gerações, o que significa que há um contato significativo entre os mais jovens e os mais velhas, como explicou o matemático Ronojoy Adhikari, da Universidade de Cambridge, que modelou o surto da Índia.

“Isso torna os idosos na Índia particularmente vulneráveis, pois são muito mais propensos a contrair a infecção da segunda e terceira gerações, em quem a infecção, estatisticamente falando, terá apenas efeitos leves”, disse ele.

Mesmo que a Índia consiga evitar o pior vírus desta vez, ainda há muito a ser feito. O governo precisa estar trabalhando para apoiar a força de trabalho informal do país, que está “arcando com o custo do bloqueio”, como diz Saran. O governo precisa fortalecer o sistema de saúde pública para se preparar para um possível retorno e ressurgimento no inverno, disse Reddy.

“Este não é um desafio de um mês, será um desafio de 12 meses”, disse Saran. “Acho que este é um bom exame de 18 meses de como respondemos como pessoas, comunidades, países e estados”.

 

Esha Mitra, Manveena Suri e Vedika Sud, da CNN, contribuíram para esta reportagem em Nova Délhi.

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