Bolsonaro e o remédio da fé
O presidente terceirizou a busca de uma solução para o enfrentamento da pandemia causada pelo novo coronavírus


Jair Bolsonaro terceirizou a busca de uma solução para o enfrentamento da pandemia causada pelo novo coronavírus. Entregou o problema aos poderes de Deus e da hidroxicloroquina, composto que assumiu no panteão do presidente o lugar de destaque antes ocupado pelo nióbio.
Nenhum problema, claro, em pedir a intervenção divina e em estimular a pesquisa em torno de um remédio cuja atuação contra o coronavírus não foi comprovada, mas também não descartada. A investigação precisa continuar, seria absurdo torcer contra o medicamento, transformá-lo em mais um elemento da polarização que contamina o país.
A grande questão é que, apesar das medidas anunciadas na área econômica — parte delas de iniciativa do Congresso Nacional —, o presidente pouco tem atuado no foco do problema, o combate à disseminação do vírus. Ao longo do fim de semana, voltou a replicar postagens que pregam o fim do isolamento, uma posição oposta à defendida pelo seu governo.
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Na prática, Bolsonaro faz oposição ao governo que, em tese, comanda. Ao falar em caos e quebradeira, demonstra não acreditar nem mesmo na eficácia das providências tomadas para atenuar em parte o impacto do vírus na economia. Ao invés de pedir a compreensão e de passar uma mensagem de acolhimento, ele joga na divisão e na desconfiança, estratégia que alimenta potenciais revoltas.
É como se, diante da ajuda bilionária anunciada pelo seu governo, ele ficasse balançando a cabeça, murmurando algo como “não vai dar certo”. Uma postura que acirra conflitos e aumenta o desespero daquelas pessoas mais afetadas pela hecatombe. E não são poucas: estudo do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), um órgão oficial, indica que 55% dos brasileiros poderão ser beneficiados pela ajuda emergencial aprovada, os R$ 600.
Mais: ao longo da semana, Bolsonaro constrangeu o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. Não recuou nem mesmo quando confrontado com pesquisas que apontavam a concordância da maioria da população com as teses defendidas pelo auxiliar. Como deixou evidente numa entrevista, conta com o apoio popular para liberar o trabalho de todos, medida que devolveria às ruas até mesmo aquelas pessoas que preferem ficar em casa e que seriam obrigadas pelos patrões a ocupar seus postos em lojas, fábricas e escritórios.
Ao aventar publicar um decreto que permanece sem sua assinatura e ao ameaçar demitir um ministro que permanece no cargo, Bolsonaro contribui para minar a própria autoridade; passa a impressão de que reina diante dos súditos concentrados no portão do Alvorada, mas não governa de seu gabinete no Palácio do Planalto. É como se, mais do que um parlamentarismo branco, o país vivesse a experiência de um presidencialismo sem presidente.
Tudo seria mais simples se Bolsonaro, no lugar de apostar em soluções simples, incertas e permeadas de fé, encarasse sua tarefa em meio à tragédia, o que inclui aceitar que não pode impor sua opinião. Não seria vergonha acabar com o jejum de bom senso, admitir o erro; não custaria experimentar uma dose de humildade, o mesmo remédio que prescreveu a Mandetta.