Fabricantes de comida para bebê nos EUA ignoraram altos níveis de metais tóxicos
Arsênio, chumbo, cádmio e mercúrio estão na lista dos dez produtos químicos mais preocupantes da Organização Mundial da Saúde para bebês e crianças


Quatro fabricantes líderes no mercado norte-americano de alimentos para bebês venderam intencionalmente papinhas com altos níveis de metais pesados tóxicos, de acordo com documentos internos das empresas incluídos em uma investigação do congresso dos Estados Unidos divulgada quinta-feira (4).
“Níveis perigosos de metais tóxicos como arsênio, chumbo, cádmio e mercúrio existem em alimentos para bebês em quantidades que excedem o que especialistas e órgãos governamentais consideram permitido”, disse o deputado democrata Raja Krishnamoorthi, de Illinois, presidente do Subcomitê de Política Econômica e do Consumidor da Câmara, que conduziu a investigação assinada por membros do Partido Democrata.
Krishnamoorthi disse que as planilhas fornecidas pelos fabricantes são “chocantes” porque trazem evidências de que alguns alimentos para bebês contêm centenas de partes por bilhão de metais perigosos. “No entanto, sabemos que em muitos casos, não devemos ter nada mais do que um dígito partes por bilhão de qualquer um desses metais em nossos alimentos”, afirmou à CNN.
Produtos químicos
Arsênio, chumbo, cádmio e mercúrio estão na lista dos dez produtos químicos mais preocupantes da Organização Mundial da Saúde para bebês e crianças.
Como elementos naturais, eles estão no solo em que das plantações e, portanto, não podem ser evitados totalmente. Algumas áreas e regiões de cultivo, porém, contêm maiores níveis de toxicidade do que outras, em parte devido ao uso excessivo de pesticidas que contêm metais e à poluição industrial contínua.
“Houve um tempo em que usamos metais como principal pesticida por muitos anos, presumindo que fossem seguros”, lembrou o doutor Leonardo Trasande, chefe de pediatria ambiental da NYU Langone.
Todos esses metais pesados foram ligados ao câncer, doenças crônicas e efeitos neurotóxicos. No entanto, é o dano devastador que pode surgir no cérebro de um bebê em desenvolvimento que torna a toxicidade da comida infantil tão crítica.
A FDA, a agência reguladora de medicamentos e alimentos nos EUA, ainda não definiu níveis mínimos para metais pesados para a maioria dos alimentos infantis. A agência estabeleceu um padrão de 100 partes por bilhão de arsênio inorgânico para cereais infantil de arroz, mas mesmo esse nível é considerado muito alto para a segurança do bebê, segundo os críticos, especialmente porque a FDA já estabeleceu um padrão muito mais baixo de dez partes por bilhão de arsênio inorgânico para água engarrafada.
Desde o momento da concepção até os 2 anos de idade, os bebês têm uma sensibilidade extremamente alta a produtos químicos neurotóxicos, como explicou Jane Houlihan, diretora nacional de ciência e saúde da Healthy Babies Bright Futures, uma coalizão de defensores empenhados em reduzir a exposição de bebês a substâncias neurotóxicas de produtos químicos.
“O cérebro dos bebês se forma rapidamente e, portanto, quando eles são expostos a metais que podem interromper esses processos naturais, os impactos podem incluir problemas comportamentais, agressão, perda de QI e todos os tipos de déficits cognitivos e comportamentais que podem persistir ao longo da vida”, detalhou Houlihan.
“Os bebês recebem a maior dose desses metais pesados em comparação com outras partes da população quando se vê a proporção pelo peso. Portanto, as consequências são graves”.
Em 2019, a organização publicou um relatório que apontou metais tóxicos em 95% dos alimentos para bebês retirados aleatoriamente das prateleiras dos supermercados. Essa exposição foi a “inspiração” para o trabalho do subcomitê do congresso, segundo o deputado Krishnamoorthi.
Informação privilegiada
Testes internos feitos pelas empresas Gerber, Beech-Nut, Nurture (da marca Happy Baby) e Hain Celestial Group (dona da marca Earth’s Best Organic) mostraram níveis de metais pesados muito acima dos limites definidos para água engarrafada pela FDA e a EPA, a Agência de Proteção Ambiental dos EUA, segundo descobriu a investigação do congresso.
Certos ingredientes de alimentos para bebês em certos produtos continham até 91 vezes o nível de arsênio inorgânico, até 177 vezes o nível de chumbo, até 69 vezes o nível de cádmio e até cinco vezes o nível de mercúrio permitido na água engarrafada. Ainda assim, as empresas aprovaram esses produtos para venda.
Segundo o subcomitê, não importava se o alimento para bebês era orgânica ou não: os níveis de metais tóxicos ainda eram altos.
A CNN solicitou uma declaração das quatro empresas antes da publicação do relatório, que não havia sido compartilhado com nenhuma empresa previamente.
A Gerber enviou um email dizendo que “todos os nossos alimentos atendem aos nossos padrões de segurança e qualidade, que estão entre os mais rígidos não apenas nos Estados Unidos, mas no mundo. Os alimentos Gerber são respaldados por uma supervisão rigorosa em todos os níveis do processo de cultivo e produção. Em locais onde os padrões governamentais não existem atualmente, desenvolvemos nossos próprios padrões rigorosos, aplicando as mais recentes orientações de segurança alimentar”.
“Conforme declarado em nossa resposta de 2019 à investigação do congresso, os elementos em questão ocorrem naturalmente no solo e na água em que as safras são cultivadas. Para minimizar sua presença, cumprimos várias etapas, incluindo: priorizar os locais de cultivo com base no clima e na composição do solo; aprovar os campos antes do plantio das safras com base em testes de solo; fazer a rotação de safras de acordo com a melhor ciência disponível; e testar produtos, água e outros ingredientes”.
A Beech-Nut Nutrition disse que “estabeleceu padrões de teste de metais pesados há 35 anos, e continuamente os revisamos e fortalecemos sempre que possível”. Além disso, a empresa afirma que testou “cada entrega de frutas, legumes, arroz e outros ingredientes para até 255 contaminantes para confirmar que cada remessa atende aos nossos rígidos padrões de qualidade. Se os ingredientes não atendem aos nossos padrões, nós os rejeitamos”.
A Happy Baby, que faz parte da Happy Family Organics, respondeu que a empresa “não vende nenhum produto que não tenha sido rigorosamente testado e não tem produtos no mercado com faixas de contaminantes fora dos limites estabelecidos pela FDA”.
“Muitos dos resultados que fornecemos como parte deste relatório de 2019 foram coletados com base em uma pequena parte de nosso portfólio e geralmente não são representativos de toda a nossa gama de produtos nas prateleiras hoje. Além disso, os pontos de dados incluem dois pontos fora da curva (outliers) de resultados de alto potencial, não replicáveis em nossos testes, mas que incluímos para integridade e transparência”.
A Hain entrou em contato após a publicação do relatório e forneceu a seguinte declaração: “Estamos decepcionados que o relatório do subcomitê tenha examinado dados desatualizados e não reflita nossas práticas atuais. A Earth’s Best tem apoiado consistentemente os esforços para reduzir metais pesados que ocorrem naturalmente em nosso suprimento de alimentos e está pronta para ajudar os esforços do subcomitê em direção a esse objetivo”.
Falha em cooperar
De acordo com a investigação do congresso, três outras empresas de alimentos para bebês não cooperaram totalmente com a investigação do subcomitê: Sprout Organic Foods; Walmart, que vende a comida para bebês Parent’s Choice; e a Campbell Soup Company, que vende a marca de produtos para bebês Plum Organics.
“O subcomitê está muito preocupado que a falta de cooperação deles possa estar obscurecendo a presença de níveis ainda mais altos de metais pesados tóxicos em seus produtos de comida para bebês do que os produtos de seus concorrentes”, afirmou o relatório.
A CNN entrou em contato por email e telefone várias vezes com a Sprout Organic Foods e o Walmart, mas não recebeu respostas antes da publicação desta reportagem.
Um porta-voz da Campbell respondeu: “Por mais de 150 anos, a Campbell colocou a segurança dos consumidores, especialmente nossos consumidores mais jovens, acima de tudo. É por isso que cooperamos totalmente com a revisão de alimentos para bebês do subcomitê de supervisão da Câmara. Respondemos rapidamente às suas perguntas e nunca recusamos nada que nos fosse pedido”.
O subcomitê não concordou com a avaliação de Campbell.
“Em vez de enviar qualquer informação significativa, a Campbell forneceu uma planilha declarando que cada um de seus produtos ‘atende aos critérios’”, escreveu o subcomitê. “A evasão da Campbell é preocupante, já que até mesmo testes independentes limitados revelaram a presença de metais pesados tóxicos em sua comida de bebê”.
Apresentação “secreta” para a FDA
O relatório do subcomitê também afirmou que Hain Celestial Group, Inc., fabricante do Earth’s Best Organic, fez “uma apresentação de slides secreta” em 1º de agosto de 2019, para os reguladores da FDA, na qual revelou “riscos aumentados de metais pesados tóxicos em alimentos para bebês”.
Os slides mostraram à FDA que a Hain testava rotineiramente apenas os ingredientes que entram em seus alimentos para bebês para metais pesados, mas falhava em testar o produto final que iria para as prateleiras.
Ainda assim, em “100% dos alimentos dos alimentos para bebês da Hain testados, os níveis de arsênio inorgânico eram mais elevados no produto final do que a empresa estimou que seriam baseados em testes de ingredientes individuais. O arsênio inorgânico era entre 28% e 93% maior nos produtos acabados”, escreveu o subcomitê.
“Esta apresentação deixou claro que os testes de ingredientes são inadequados e que apenas os testes do produto final podem medir o verdadeiro perigo representado pelos alimentos para bebês.”
A Hain enviou à CNN a seguinte resposta: “A reunião não foi ‘secreta’: fornecemos o documento ao subcomitê para que ele fosse útil. O objetivo da reunião foi determinar um caminho a seguir para expandir nosso programa de testes para incluir mais matérias-primas e reduzir o nível geral de metais em nosso produto acabado”.
“Após a reunião, tomamos várias medidas para reduzir os níveis de metais pesados em nossos produtos acabados, incluindo não usar arroz integral em nossos produtos que são principalmente à base de arroz, alterando outros ingredientes e conduzindo testes adicionais do produto acabado antes do envio”.
Nenhuma nova ação da FDA
Sob o governo de Donald Trump, a FDA não tomou nenhuma nova ação em resposta à apresentação. “Até hoje, os alimentos para bebês que contêm metais pesados tóxicos não trazem rótulos ou advertências aos pais. Os fabricantes são livres para testar apenas os ingredientes ou, na grande maioria dos alimentos para bebês, não realizar nenhum teste”, escreveu o relatório do subcomitê.
A CNN entrou em contato com a FDA com um conjunto de perguntas detalhadas sobre essas questões apontadas pelo relatório e recebeu uma declaração.
A FDA disse, em um trecho: “A amostragem de cereais infantis de arroz mostrou que desde 2016 os fabricantes fizeram um progresso significativo na redução do arsênio em produtos de cereais infantis de arroz, demonstrando que este nível de ação é alcançável pela indústria”.
“Daqui para frente, bons processos de fabricação, como o fornecimento de arroz e outros ingredientes com níveis mais baixos de arsênio inorgânico, continuarão a ajudar os fabricantes a produzir cereais infantis de arroz com níveis abaixo do nível de ação”.
Uma fonte da FDA disse mais tarde à CNN que a agência está atualmente revisando as conclusões do relatório do subcomitê.
Nurture (Happy Baby): Das quatro empresas que fizeram parte da investigação, apenas a Nurture testou o produto final (a papinha real consumida pelos bebês) depois que todos os ingredientes foram acrescentados.
Documentos internos da Nurture mostram que a empresa estabeleceu uma meta de 100 partes por bilhão para o arsênio inorgânico na papinha pronta. Ao lado dessa meta foi listado o nível real de arsênio encontrado no alimento.
Apesar do fato dos níveis de arsênio nos produtos testados rotineiramente acima da meta declarada – 120 partes por bilhão, 130 partes por bilhão, 160 partes por bilhão e até 180 partes por bilhão –, os documentos mostraram que a Nurture continuou a marcar os produtos como prontos para venda.
Os níveis de chumbo, cádmio e mercúrio também foram frequentemente altos, disse o relatório do subcomitê. Documentos mostraram que a Nurture vendia alimentos para bebês Happy Baby testados em até 500 partes por bilhão e 641 partes por bilhão de chumbo.
A Nurture também vendeu “um produto final de comida para bebês que continha 10 ppb (partes por bilhão) de mercúrio e dois outros que continham 9,8 e 7,3 ppb (partes por bilhão). Um nível de 10 ppb (partes por bilhão) é cinco vezes mais do que o padrão de 2 ppb (partes por bilhão) da EPA para água potável “, escreveu o subcomitê.
Hain (Earth’s Best Organic): A Hain, junto com Gerber e Beech-Nut, não testou seus produtos finais, concluiu o subcomitê.
Em vez disso, a empresa testou vários ingredientes usados no produto final, como canela, purê de mirtilo e uma mistura de vitaminas usadas para aumentar os níveis de nutrientes chamada “pré-mistura de vitaminas”, que testou 223 partes por bilhão para arsênio inorgânico.
Nenhum nível de chumbo é seguro para crianças, de acordo com a Academia Americana de Pediatria. Ainda assim, a Hain usou ingredientes contendo até 352 partes por bilhão de chumbo, mostraram documentos internos.
Em relação ao cádmio, a Hain usou cerca de 102 ingredientes que testaram mais de 20 partes por bilhão do elemento; alguns testaram muito mais, até 260 partes por bilhão de cádmio. Não há documentos que ilustrem os níveis de mercúrio nos alimentos para bebês Earth’s Best Organic da Hain, já que a empresa não faz testes.
Alimentos para bebês Beech-Nut: A Beech-Nut fabricava comida para bebês com ingredientes testados com “até 913,4 ppb (partes por bilhão) de arsênio”, descobriu a investigação, incluindo um aditivo para “maciez do miolo” que continha até 710,90 partes por bilhão de arsênio.
A Beech-Nut também usou “muitos ingredientes com alto teor de chumbo, incluindo 483 que continham mais de 5 ppb (partes por bilhão) de chumbo”, escreveu o subcomitê.
Os níveis de cádmio não devem exceder 5 partes por bilhão na água potável, de acordo com a FDA, mas alguns ingredientes usados pela Beech-Nut atingiram níveis de 344,55 partes por bilhão. Assim como a Hain, a Beech-Nut não testa mercúrio.
Alimentos para bebês Gerber: A Gerber testa apenas ingredientes, não o produto final, disse o subcomitê. Alguns dos ingredientes usados na preparação da comida para bebês Gerber, como a “batata-doce convencional”, chegaram a chegar a 48 partes por bilhão de chumbo.
Documentos internos também mostraram que a gigante de alimento para bebês usava ingredientes com alto teor de arsênio, “incluindo 67 lotes de farinha de arroz que testaram mais de 90 ppb (partes por bilhão) de arsênio inorgânico”.
A empresa raramente faz testes de mercúrio, disse o subcomitê, mas os níveis de cádmio em 75% das cenouras da Gerber excederam as 5 partes por bilhão recomendadas, com algumas chegando a 87 partes por bilhão, disse o relatório.
Legislação pode ser necessária
O relatório do subcomitê foi claro sobre o que deveria ser feito. Em vez de estabelecer limites para um alimento de cada vez, a FDA deve padronizar os níveis máximos para cada metal tóxico que pode danificar o cérebro em desenvolvimento de um bebê e aplicá-los a todos os alimentos.
O subcomitê recomenda testes obrigatórios de qualquer produto alimentar para bebês antes de chegar às prateleiras. Os fabricantes não devem mais ser autorizados a simplesmente testar ingredientes.
Devem ser encontrados substitutos para quaisquer ingredientes acima dos limites recomendados e, se isso não acontecer, o alimento ou ingrediente não deve ser usado na comida do bebê. É o caso do arroz, por exemplo, que é uma fonte primária de exposição ao arsênio inorgânico para bebês.
“Todo fabricante de comida para bebês está ciente de que nós, no congresso, não vamos mais sentar e aceitar a situação como está”, afirmou Krishnamoorthi.
“Espero que as empresas comecem voluntariamente a realizar ações como testar seus alimentos de forma mais adequada e completa e eliminar certos ingredientes que sabemos serem problemáticos agora”, disse ele.
“Mas também estou sendo realista. Precisamos de legislação para obrigar o cumprimento dos padrões que a FDA precisa desenvolver”.
Megan Marples, da CNN, contribuiu para esta reportagem.
(Texto traduzido, clique aqui para ler o original em inglês).