Médicos Sem Fronteiras: falta de ações e de crença na ciência matam brasileiros
Para Ana de Lemos, diretora dos MSF, falta de médicos e insumos na linha de frente do combate à Covid-19 refletem ausência de coordenação nacional


A organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) fez nesta semana um apelo às autoridades brasileiras para que reconheçam a gravidade da crise causada pela pandemia de Covid-19 no país. A entidade pede uma “resposta centralizada e coordenada para impedir que continuem ocorrendo mortes que podem ser evitadas”.
Presente no combate a epidemias e no suporte a populações vulneráveis e em conflito em mais de 70 países, a MSF considera que o Brasil vive uma catástrofe humanitária. Com base em números da OMS (Organização Mundial de Saúde) e do Ministério da Saúde, a organização estima que 11% dos novos casos e 26,2% das mortes ocorridas por Covid-19 no mundo durante a semana passada aconteceram no país.
Em entrevista à CNN, a diretora-executiva da organização no Brasil, Ana de Lemos, critica “o desprezo pelas evidências científicas” e a falta de diretrizes nacionais de saúde pública. Segundo Lemos, essas falhas deixam o trabalho de orientar e cuidar da população quase que exclusivamente para os profissionais de saúde, já esgotados e com a saúde mental prejudicada.
CNN Brasil: A direção dos Médicos Sem Fronteiras fez um apelo às autoridades brasileiras para que reconheçam a gravidade da crise. A falta desse posicionamento pode ser a causa da atual situação do Brasil em relação à pandemia de Covid-19?
Ana de Lemos: A falta de uma direção nacional que trabalhe contra a disseminação do vírus faz essa função cair cada vez nas mãos do profissional de saúde. A situação só será revertida se o governo começar a promover, de fato, medidas simples, mas eficazes e comprovadas cientificamente, como o uso de máscaras, distanciamento social, redução da mobilidade, de contato entre as pessoas e algumas atividades que podem ser reduzidas.
Não dá para esquecer que 41% da população brasileira têm trabalho informal, então é importante ter guias centrais de como fazer isso da melhor maneira possível. No Brasil não há política de testagem, de rastreamento de contatos, e isso é essencial se quisermos conter a disseminação do coronavírus. A epidemia não se resolve nas UTI (Unidades de Terapia Intensiva) e nas unidades básicas de saúde. Mas os médicos e enfermeiros foram deixados sozinhos, o que vem causando esse enorme aumento de mortes.

A saúde pública brasileira sempre teve problemas de desabastecimento e número de leitos em hospitais. Quais gargalos a pandemia mostrou?
O sistema de saúde público brasileiro, apesar de não ser perfeito, é um exemplo para o mundo, por ser gratuito. Na verdade, a falta de recursos aumentou dramaticamente em todos os setores de cuidados médicos.
De um ano para cá, essa situação se agravou dramaticamente. As UPAs (Unidades de Pronto-Atendimento) estão colapsadas. Desde o ano passado, estamos trabalhando em mais de 60 unidades de saúde. E o que vimos este ano é extremamente dramático. Faltam pessoas, médicos, enfermeiros, EPI (equipamentos de proteção individual). Vimos médicos trabalhando doentes, tendo que lidar com falta de oxigênio, com medo da escassez de sedativos e de remédios essenciais.
Quais são as principais falhas do Brasil no combate à pandemia?
É uma série de falhas, mas considero a falta de suprimentos essenciais como oxigênio, sedativos, testes em massa, EPIs e protocolos federais de cuidados hospitalares as principais. Há mais de um ano que os profissionais da linha de frente cumprem jornadas exaustivas. Há falta de médicos.
O mundo vive uma crise de saúde e uma crise econômica por causa da pandemia. Com uma das taxas mais altas de infecção e de mortes no mundo, como o Brasil se encaixa nesse cenário?
As UTIs e as unidades de saúde não têm recursos. Junta-se a isso a falta de medidas de contenção de disseminação do vírus nas comunidades e uma política de testagem que não acontece.
Trabalhamos há mais de 50 anos com epidemias e com a comunidade científica. Com essa nova epidemia, estamos aprendendo a cada dia, mas fica evidente, no caso do Brasil, como a falta de ações e a descrença em dados científicos têm causado a morte de milhares de brasileiros.
Realmente parece que a situação no Brasil é muito mais dramática do que no resto do mundo. Só no mês de março, houve mais de 66 mil mortes pela Covid-19 no país, 26% das mortes do mundo foram aqui, segundo dados da plataforma “Our World in Data”, ligada à Universidade de Oxford. O desprezo pelas evidências científicas faz parte disso.
Como a pandemia está afetando o trabalho do MSF no Brasil?
Os MSF começaram a trabalhar no Brasil há 30 anos, na epidemia de cólera em Rondônia. No ano passado, começamos dois projetos em oito estados, em um total de 60 unidades de saúde. Mas com os extremos da pandemia, passamos a trabalhar em conjunto com profissionais da linha de frente no Amazonas, em Rondônia e em Roraima. Como faltam protocolos em nível federal, ou quando não são atualizados da forma como deveriam e muitas vezes prejudicam o trabalho desses profissionais, os ajudamos com nosso conhecimento de protocolos internacionais relacionados à Covid-19.
Pode dar mais detalhes sobre esse trabalho dentro dos hospitais?
Trabalhamos muito na prevenção e no controle de doenças infecciosas nas unidades de saúde e nas UTIs, treinando médicos. Mas esse tipo de treinamento era para ser feito de maneira coordenada por uma gestão federal.
Ajudamos nos circuitos de entrada e saída dentro dos hospitais, na triagem de pacientes para evitar contaminação nos leitos e nas UTIs. Nossos intensivistas trabalham nas UPAs e nas UTIs, geralmente ajudando a fazer intubação, porque muitos médicos que nunca tinham feito começaram a fazer.
Conseguimos levar médicos de outros estados para trabalhar em Rondônia, com uma ótima relação com os governos locais. Trabalhamos também com a saúde mental de médicos, enfermeiros e auxiliares.
Como está a saúde mental dos profissionais da linha de frente?
Percebemos que os médicos, os enfermeiros e os auxiliares estão em sofrimento profundo, porque estão vendo muitas pessoas morrerem por causas evitáveis. Eles estão vivendo situações para as quais não estavam preparados e estão realmente cansados. Estão esgotados, um ano sem férias, vendo inclusive parentes morrerem. Isso nos preocupa muito em médio prazo.
No Brasil, médicos chegaram a receitar remédios sem evidência científica comprovada comprovada contra a Covid-19, como a hidroxicloroquina e a ivermectina. Como vocês avaliam essa questão como uma organização médica?
As evidências científicas mostram que a hidroxicloroquina e ivermectina não são eficientes no tratamento da Covid-19. No início da pandemia, como é algo novo para todo mundo, houve estudos que buscavam essa eficiência e houve uma certa esperança, mas há um tempo já que a cloroquina está totalmente desaconselhada. A ivermectina é um antiparasitário que normalmente deve ser tomado uma vez por ano e pode ter efeitos muito prejudiciais para a saúde.
A ideia de um kit de prevençãofaz com que muita gente se sinta falsamente segura e que, se contaminada com mais facilidade, contamine outras pessoas. O que vemos nos hospitais onde trabalhamos é que as camas de UTI estão cheias de pessoas que tomaram o kit de prevenção.
A comunidade médica começa a se deparar com essa realidade. Mesmo os que pensavam que isso poderia ser uma possibilidade, começam a ver que constantemente têm que tratar pacientes graves que tomaram o kit prevenção. Mas, principalmente para a sociedade, isso faz muito mal. É muito danoso porque passa essa falsa sensação de proteção que não é real.
Os MSF têm longa experiência com epidemias. Há algo na epidemia de Covid-19 que é novo?
Trabalhamos em 70 países, em mais de 900 unidades de saúde, junto com a comunidade científica de vários países, inclusive com a brasileira, mas essa epidemia é uma experiência nova para todo mundo. Estamos aprendendo diariamente a lidar com ela, sempre levando em conta as evidências científicas, os protocolos científicos de combate ao vírus.
Com o foco na pandemia de Covid-19, o combate a outras doenças tem sido negligenciado mundo afora e no Brasil?
É evidente que sim. Inclusive porque muitas unidades de saúde têm que se dividir ao meio, mas com o mesmo número de profissionais. Além de atender os pacientes com Covid-19, estes profissionais precisam evitar o contágio de pacientes com câncer, gestantes, crianças pequenas…Tudo isso com o mesmo pessoal.
Quando se fala em ocupação de 100%, na realidade é ainda mais, como ocorreu no Amazonas, porque lá se incluíam macas para abrigar pessoas. Assim, as outras doenças ficaram esquecidas e isso vai ter um impacto na saúde pública do país. Inclusive já está ocorrendo porque algumas campanhas de vacinação estão atrasadas e isso não somente no Brasil.
Por outro lado, neste período, as doenças transmissíveis por contato humano diminuíram, apesar das mensagens contraditórias acerca do distanciamento social. gripe e sarampo diminuíram.
Outros diagnósticos, no entanto, estão mais tardios, como a epidemia de dengue que estava no ápice; doenças crônicas e câncer também, porque os cuidados dessas doenças diminuíram dramaticamente para pessoas que não têm acesso à saúde privada – a maioria das pessoas no Brasil.
Os MSF têm forte atuação na África. Como está a situação nos países do continente?
A cepa encontrada na África do Sul é bastante agressiva, mas por lá há uma coordenação centralizada, as pessoas ficam em casa e os movimentos são restritos ao essencial. Alguns países africanos fecharam suas fronteiras. Quase todos aderiram às medidas de contenção do vírus.
A vacinação terá condições de mudar a situação no Brasil?
Sim. É preciso aumentar a velocidade da vacinação para evitar a disseminação do vírus e para evitar a chegada das pessoas às UTIs, mas é preciso, sobretudo, continuar a incentivar o uso de máscaras, respeitar o distanciamento, evitar aglomerações em locais fechados e seguir as evidências científicas. É preciso ir além disso, com uma política de testagem para que as pessoas infectadas sejam isoladas para evitar contato e infectar outras pessoas. Os países nos quais a vacinação está mais adiantada ainda estão mantendo as medidas.
Um lockdown no Brasil ainda faria efeito ou é tarde?
Aqui no Brasil, as medidas de contenção fazem falta e é urgente que se façam, porque assim muitas vidas podem ser salvas. Além disso, faltam mensagens centrais feitas de forma coerente, com base em evidências científicas, ditas de uma maneira clara para as pessoas entenderem. O que não pode é ter mensagens contraditórias por parte das autoridades.
As UTIs vão voltar a ficar cheias, e os profissionais de saúde estão com o peso da pandemia nas mãos deles. Nunca é tarde para isso. Mas tem que ser em nível federal. Não dá para cada estado e município falar de forma diferente. Isso não deveria ser uma questão política, mas de atender às necessidades das comunidades. A politização vem causando muitas mortes que poderiam ser evitadas.
Como outros países estão vendo o controle da pandemia no Brasil?
Percebemos uma grande preocupação de entidades como a OMS (Organização Mundial da Saúde) e Opas (Organização Pan-Americana de Saúde) com as vidas perdidas no país e pela disseminação descontrolada do vírus que é considerada um perigo para todo o mundo.
Uma rede de solidariedade se formou no Brasil nesta pandemia. Isso se refletiu nas doações ao MSF?
No Brasil as pessoas são muito solidárias. Tanto que 98% de nossas doações são de pessoas privadas. É uma ajuda de pessoa a pessoa. A solidariedade brasileira é surpreendente e aumenta todos os anos. Hoje, quase 600 mil brasileiros nos ajudam. E é para isso que existimos, para ajudar as pessoas que mais precisam nos momentos de emergências.